Eu sou apegada a palavras. Aos significados das palavras. E hoje todo esse texto vai girar em torno de dois desses meus apegos.
A primeira memória que tenho da palavra protocolo vem de uma aula de geografia, há muitos anos. O tema era o Protocolo de Kyoto, um tratado internacional do final dos anos 1990 sobre redução de emissão de gases que afetam o efeito estufa. Aliás, uma aula que certo presidente um certo país que se acha plural e polícia do mundo, com toda certeza, faltou, mas não vamos falar disso.
Acho até compreensível, então, que, depois de muitos anos utilizando protocolo – que eu nunca acerto escrever de primeira, é um dos meus defeitos de fábrica – tanto pra coisas importantes como tratados internacionais quanto pra coisas corriqueiras do meu cotidiano como o ato de dar prosseguimento a processos, eu tenha transportado essa palavra e seu significado pra outros departamentos da minha vida. A utilizo, por exemplo, pra definir, bem, alguns protocolos que eu e Renan temos no dia-a-dia. Geralmente isso envolve todo um discurso dessa ansiosa aqui sobre como podemos reagir ou deixar de reagir a assaltos cinematográficos que com certeza iremos sofrer enquanto estamos viajando para países distantes (ou outras cidades dentro do mesmo estado ou na rua de casa enquanto passeamos com a Apple).
Enfim. Não era bem disso que eu queria falar. O que quero dizer é que acho protocolos mais úteis que conselhos, quando pensamos, também, na vida depois do sim. Eu sei que é batido. A ideia de que conselho, se fosse bom, era vendido é presente no nosso imaginário. O mantra é repetido à exaustão, geralmente antes de recebermos, na mesma frase, um conselho.
No chá-bar que organizamos antes do casamento, nossos convidados podiam escrever conselhos anônimos pra gente. A brincadeira, claro, envolvia dar os conselhos mais enigmáticos pra que eu e Renan errássemos o autor e, consequentemente, bebêssemos uma dose de qualquer coisa servida num chá-bar – ênfase no bar. Mas o fato é que, embora os conselhos tenham sempre essa aura de problemáticos, algumas das dicas dos nossos amigos foram valiosas. Outras, claro, nem tanto, mas era mais esse o espírito da brincadeira.
E eu guardei esses recados depois da festa. Aí esses dias, numa das milhões de cruzadas da arrumação que faço no apartamento, encontrei o plástico encarregado de conservar aquelas anotações pra um dia eu montar um quadro com elas (nunca aconteceu, nunca irá acontecer). Foi uma experiência interessante, reler, numa outra perspectiva, as mensagens. As mais engraçadas mencionavam as histórias pitorescas pelas quais eu e Renan já tínhamos passado na vida e nos aconselhavam a não repetir aqueles erros. Não estacionem o carro em banhados antes de participarem de corridas/maratonas. Essa história é ótima desde que nasceu e só melhora com o tempo. Quando encontrar com a gente, não esqueça de perguntar. Renan tem um jeito todo especial pra contar. E inclusive adora.
Alguns bilhetes, um pouco mais sérios, lembravam que devíamos ter planejamento financeiro, recomendavam a idade de filhos, diziam pra não deixar a TV ligada na hora do jantar. Um grande número deles alertava que deveríamos ter paciência. Aparentemente, todo mundo tem uma receita infalível para fazer o relacionamento dos outros dar certo. E é esse o problema que nasce junto com o conselho, acho eu. Você coloca uma perspectiva de fora no que diz. Como você, tal qual um avaliador, acha que aquelas pessoas ali devem se comportar, agir e reagir para que as coisas funcionem direito. Você isola o problema, resolve a questão na sua cabeça e, a partir dessa premissa, aconselha.
Não digo que é ruim. Não é. Não deve ser. Aconselhar faz parte das funções que temos como família, amigos, conhecidos, pessoas. Só que cada pessoa tem seu próprio conceito de como as coisas devem funcionar direito, entende? O conselho, na maioria das vezes, só funciona mesmo pra quem aconselha. E pode, de quebra, virar uma verdadeira fonte de ansiedade pra quem recebe.
Eu, por exemplo, detesto discutir. Não gosto de briga, confusão, bate boca. Quando eu e Renan brigamos, o que acontece geralmente por coisas tão idiotas quanto mensagens de telemarketing e/ou fones de ouvido, meu modus operandi é silenciar e emburrar. Às vezes por dias. Eu fico ruminando todo um universo de coisas na minha cabeça e digo nada ou muito pouco. O conselho de jamais dormir brigado, pra mim, nunca funcionou e jamais vai funcionar. E eu demorei um tempo até aprender a me libertar dessa ideia prontinha e embalada. Convivi com um sentimento – horroroso – de que meu casamento não iria dar certo porque eu simplesmente não conseguia resolver nossas discussões antes de dormir. Foi um processo para que eu entendesse que eu preciso passar pela análise de toda a discussão, da vida, do universo, de tudo mais lá dentro da minha cabeça antes de qualquer coisa. É o meu processo.
Renan não casou enganado, sabia disso. Mas ele não funciona assim. Gosta de falar tudo (e mais um pouco). Pá, pá, pá, pronto, resolvido. Resolvido? Tá tudo bem? Tá. Próximo tópico. E eu odeio isso. Nossas discussões costumam ser cheias de falas, mas também de silêncios. E longas, também. São defeitos de fábrica. Meus, dele, nossos. Para esses defeitos, conselhos sobre planejamento financeiro, idade pra ter filhos ou locais ideais pra jantar e nada são iguais. Igualmente sem função.
Relacionamentos são construídos, de modo geral, por pessoas que não são iguais. Pessoas com histórias de vida diferentes, com formações diversas, com culturas díspares. Que acordam, tomam café, encaram o dia e dormem de formas ímpares. Por pessoas que, embora geralmente sejam falantes nativas de um mesmo idioma, falam, bem na verdade, línguas diferentes. São, no fim das contas, estrangeiras umas as outras. Todo mundo é uma ilha. Ou um país?
Porque, se fossemos países, poderíamos acertar detalhes dessa convivência de dois em grandes conversas – francas, honestas e reais sobre os nossos defeitos de fábrica. Acordos internacionais, protocolos, como o de Kyoto. Ah, mas Marta, acordos internacionais não vivem sendo desrespeitados pelos próprios países?
Bom, depende dos países, né?
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Chorando aqui com esta reflexão, que me fez lembrar muito dos erros passados e talvez aceitar que eles não vão deixar de acontecer no futuro, mas que sempre dá para tentar melhorar o protocolo!