No começo da semana, passei na casa dos meus pais pra buscar algumas encomendas. Minha mãe tava vendo novela. Enquanto abria a caixa de livros, comentei com ela que não fazia ideia do que acontecia na TV. Minha vida anda tão louca, mãe, que não sei nem o nome dessa novela. Ela me explicou em duas frases a história toda. Um amor impossível, um casal de classes sociais diferentes numa novela de época. Filhos perdidos, desencontros, armações pra separar quem o destino se encarregou de unir.
Eu gosto de novelas. Não sou como a minha avó, que organizava toda sua rotina em torno das novelas que acompanhava, mas gosto. Sou telespectadora de primeiros e últimos capítulos, mas gosto de saber que tipo de história contam, quem são os protagonistas e quais os temas principais.
E compreendi a trama inteira nas frases da minha mãe. Todo mundo entende a linguagem da novela. Ainda que tenha alguma variação, a história não muda muito. É por isso que, ao mesmo tempo, se fala tanto em crise da teledramaturgia e ela continua dominando a grade da programação da TV aberta.
E aí fiquei pensando nisso.
Amanhã é aniversário de casamento dos meus pais. Vai ser o quadragésimo quinto aniversário deles. Quarenta e cinco anos casados. Algumas pessoas realmente passam suas vidas inteiras juntas, disse Anna Scott (Julia Roberts) pra Will Thacker (Hugh Grant), naquela cena maravilhosa no jardim de Um Lugar Chamado Notting Hill (Notting Hill, 1999).
Esse filme, aliás, é meu filme favorito de todos os tempos. Mas ele tem o mesmo ponto de final de tantos outros filmes, livros e novelas. Acaba quando são superados os pontos que impediam a felicidade e o romance finalmente começa. É engraçado, isso. Não costuma ser a história de quem passa uma vida inteira juntos que a gente vai ver na TV ou no cinema.
De modo geral, a ficção é responsável por alimentar em nós algumas perspectivas meio ilusórias de quando as coisas começam.
E a gente vai meio que convivendo com essas ideias durante a nossa vida, né? Vai colocando uns marcos – quando acabar o colégio, depois da formatura, quando tivermos sucesso na carreira, no dia do casamento, depois dos filhos. Tudo pra frente. Pra depois. Como se só pudéssemos viver uma cena depois da outra. A ordem infalível dos planos sequenciais da nossa vida.
As histórias das novelas e dos filmes como Um Lugar Chamado Notting Hill são lineares, construídas em um crescente de começo, meio, fim. Têm roteiro. Fazem sentido, lá, na ficção. Mas a vida aqui, no mundo, não costuma ser assim, ensaiadinha. A vida tá aí, acontecendo. Sendo uma bagunça, colocando uma coisa antes da outra ou, de maneira mais regular, uma coisa e outra acontecendo ao mesmo tempo. Testando nossas visões únicas, colocando em dúvida nosso storytelling. De todos os jeitos possíveis.
E aí, com isso tudo na cabeça, da novela ao aniversário de casamento dos meus pais, eu olho pras minhas manhãs.
Eu sou uma daquelas pessoas meio insuportáveis, sabe? Já sou avessa a muita socialização normalmente, antes do primeiro café, então, sério. Quando morava na casa dos meus pais, comumente minha mãe me mandava ir pra frente do espelho, olhar bem pra Marta no reflexo e dar bom dia pra ela, sorrindo – vê se isso é coisa que se faça com a pessoa.
Renan, por outro lado, ouve hip-hop. Assim, logo cedo. Num volume exageradamente alto pra essas horas. Cada música deve durar um cinco minutos, mas, juro, parece uns três meses. E é pior quando ele está aprendendo a letra – não sei como ele consegue – porque aí ele ouve só aquela música durante toda a rotina matinal.
À noite, somos pessoas absolutamente diferentes. Parece que invertemos os papeis. É meu melhor horário, faço mil coisas ao mesmo tempo. Ele desliga. Dez e meia, quando muito, ele para de interagir com o mundo. Nos finais de semana, conseguimos fazer com que a bateria dure por mais uma ou duas horas, mas, invariavelmente, ele entra em modo não perturbe.
E nós estamos aí, dividindo da vida. Casamos cedo. Ainda não tínhamos uma carreira estabelecida, um plano perfeito em andamento, com tudo roteirizado. Decidimos casar não porque estávamos absolutamente prontos pra isso – não estávamos, ninguém está. Decidimos porque não queríamos esperar carreiras estabelecidas, salários suficientemente altos, a condição financeira de pagar todos os boletos todos os meses sem precisar fazer malabares com as contas. Esse momento perfeito pode não chegar nunca.
É preciso optar. E nós optamos. E estamos aí, sem os altos salários, com malabares no final do mês, com hip-hop nas manhãs. E com a ideia de, daqui uns muitos anos, comemorar também quarenta e cinco anos de casamento, como meus pais vão comemorar amanhã.
Provavelmente não vai ter uma história disso aí que a gente vive todo dia num filme, numa novela, num livro. É por isso que a ficção tá sempre correndo atrás da realidade, não o contrário.
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Lindamente linda!