Há alguns meses, topei com uma imagem de uma entrevista de Jean-Luc Godard, o diretor do filme que Mônica queria ver naquela música do Legião Urbana. Na legenda dessa imagem, lia-se: “e eu sempre senti que um homem e uma mulher que não gostam dos mesmos filmes eventualmente irão se divorciar”.
É bobo de minha parte, mas eu guardo essas coisas na cabeça. Elas ficam ocupando um espaço de memória que deveria ser preenchido com coisas mais interessantes, eu sei, mas não consigo evitar.
Lá atrás, quando vi essa imagem, mandei na hora pra Renan. Eram duas razões principais, quase antagônicas. Razões, digamos assim, Eduardo e Mônica.
A primeira, era piada. É que Renan odeia de verdade a palavra eventualmente – tem a ver com nosso casamento. Quer dizer. Tem menos a ver com nosso casamento e mais a ver com a minha forma cinza de ver o mundo.
Quando estávamos decidindo se íamos casar aqui ou na Disney, eu falei pra ele que se a gente eventualmente fosse se divorciar, seria muito mais fácil se tivéssemos casado aqui. Por óbvio que não casamos aqui. E eu ainda precisei ouvir o maior sermão sobre como eu não deveria, jamais, casar pensando na separação. Pior: precisei reconhecer que Renan tinha razão – mesmo que um dia, se a gente eventualmente se separar, esse divórcio vá mesmo dar o maior trabalho do mundo.
Não dá pra começar pensando no fim, não importa o quão pessimista você seja. Não importa o quão cinza você enxergue a vida. Não importa o quão complicado vá ser um eventual divórcio. Não dá pra começar pensando no fim.
A segunda, era medo. Eu e Renan não gostamos dos mesmos filmes. É claro que vemos as mesmas coisas na maior parte do tempo – Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia, teatro, artesanato e foram viajar. Mas essencialmente não gostamos dos mesmos filmes. Renan gosta de filmes cheios de camadas, de diretores diferentões. Gosta de Drive (Idem, 2011), de Poderoso Chefão (The Godfather, 1972) e de cinema francês. Eu gosto de filmes de ação e de heróis detonando vilões em sequências de câmera caóticas. Gosto de comédias românticas e filmes de High School. Meu conhecimento de cinema francês começa e termina com O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le fabuleux destin d’Amélie Poulain, 2001).
Ter lido aquela frase – vinda de um cara que aparentemente sabe o que tá falando, mesmo que ache que casamentos só acontecem entre homens e mulheres – me balançou um pouco. Será que esse casamento um dia vai ruir porque eu não consigo achar Poderoso Chefão o melhor filme de todos os tempos? Eu não pude evitar esse pensamento.
Venho aqui nesse espaço todos os meses há um ano. Escrevo sobre relacionamentos a partir da minha experiência prática em andamento e da minha capacidade relativamente boa de teorizar as experiências alheias.
Escrevo sobre coisas que aprendi com meu casamento e coisas que aprendi de olhar para outros casamentos. Escrevo sobre teorias que passo anos desenvolvendo em silêncio e sobre outras que saem sem nem enroscar em quase nada. Escrevo sobre o dia-a-dia de ser casada com um cara que é capaz de jogar a chave do carro no lixo sem querer, mas é a maior autoridade que eu conheço em música e cinema de vanguarda, mesmo sendo eu essa pessoa obsessiva com organização e fã de Legião Urbana.
É bobo de minha parte vir aqui hoje e admitir pra vocês que qualquer frase-e-foto da internet pode me balançar. Mais do que bobo. É um movimento capaz de quebrar o pouco de legitimidade que eu possa ter conquistado nesse último ano. Mas me balança. É claro que me balança.
A gente vive sempre procurando as oposições. O que nos individualiza, o que diferencia do outro, mesmo que o outro seja a pessoa com quem a gente escolheu dividir a vida. Ela fazia medicina e falava alemão, e ele ainda nas aulinhas de inglês.
Mas ando cada vez mais convencida de que a gente não pode ficar cultivando essas oposições binárias e excludentes. Sabe? Essas do tipo ela gostava do Bandeira e do Bauhaus, de Van Gogh e dos Mutantes, do Caetano e de Rimbaud, e o Eduardo gostava de novela e jogava futebol-de-botão com seu avô.
Ando convencida de que o sucesso dos relacionamentos depende de pararmos de procurar onde estão as divergências. Depende de focar no que converge, sim, fotografia, natação, teatro e artesanato. Mas talvez dependa muito mais de olhar para o que cada um é capaz de fazer para que o outro se sinta à vontade com suas escolhas, ainda que não sejam as primeiras escolhas individuais.
O Eduardo sugeriu uma lanchonete, mas a Mônica queria ver o filme do Godard. Se encontraram então no parque da cidade.
E quem irá dizer que não existe razão?
Comment
Que sensacional.
Focar no que converge.
As diferenças cada um pode viver a sua.
Não é porque escolhemos estar casados que precisamos deixar de ser quem devemos/queremos/podemos ser.
E quem um dia irá dizer?