Quando minha irmã estava planejando o casamento dela, oito anos atrás, me pediu um texto. O objetivo, diz minha memória, era mostrar ao celebrante para que ele pudesse conhecer um pouco o casal e preparar a cerimônia. Eu fiquei meses refletindo sobre essa missão que ela tinha me dado. Afinal, sou a irmã mais nova, aquela figura mitológica que jamais deixa de ser criança, tinha vinte anos e não tinha tido na vida um relacionamento saudável. Por que, pensava eu, Mari queria que eu escrevesse um texto para um casamento? O que ela esperava de mim? O que ela achava que eu tinha a dizer?
Eu não sabia muito bem o que estava fazendo – uma sensação que, sinto dizer, não se desfez com o tempo, embora eu esteja aqui a convite da Kelly, escrevendo uma coluna sobre a vida depois do sim. Então, meio vacilante como agora, eu comecei aquele texto com o que sei fazer melhor: reunir coisas numa caixinha dentro da minha cabeça. Separei tudo que eu já tinha visto, lido, escutado e ouvido falar sobre casamento. Uma das primeiras coisas que usei como fonte praquela encomenda foi um livro de conselhos que eu tinha achado nas coisas da minha mãe uma vez. Pequeno manual de instruções para a vida, de H. Jackson Brown Jr. Um livrinho interessantíssimo. Epigrafei aquele texto com um conselho um pouco irônico:
Conselho 223: Resista a dar conselhos sobre casamento, finanças ou estilos de penteado.
Falei, com completa ignorância prática sobre o tema, que um relacionamento não deve ser baseado em paixões arrebatadoras, mas sim em um amor possível. Escrevi, com a cabeça cheia de teorias, tão somente, que um bom relacionamento é feito “daquele tipo de amor construído com fundações sólidas, daquele tipo de amor que a gente sabe (…) que vai dar certo, mesmo quando tudo estiver dando errado”. Disse que os envolvidos em um relacionamento devem, ainda que não sejam adeptos de provérbios orientais, saber que “o amor por uma pessoa deve incluir os corvos do telhado da casa dela”.
Hoje, olhando pra esse documento cheio de vícios de escrita que eu felizmente abandonei, penso que eu tenho uma sorte na vida: eu sou boa em teorizar. Eu consigo olhar pra alguma coisa que eu jamais experimentei e tirar uma norma dela. É claro que isso não é algo completamente verdadeiro ou assertivo, porque nada é. Eu tive, naquele texto, algumas ideias plenamente utópicas. Ideias que hoje, vivendo o meu próprio casamento, estão revistas, reformadas, repensadas. Lá, eu falei de certezas. Hoje, eu repenso certezas. Hoje, eu acredito que não existem certezas.
Acredito que não há uma única pessoa certa pra cada outra pessoa no planeta. Aliás, eu duvido muito que os humanos existam em número par no planeta e, na mesma medida, desconfio desse conceito todo de pessoa certa. Mas acredito – mais do que acredito em qualquer outra coisa sobre o assunto – que um casamento funciona se as pessoas envolvidas querem que funcione. Calma, não se aflija não. É claro que é fundamental se apaixonar. E aí não sei dizer se apaixonar-se é uma escolha ou não. Às vezes acho que sim, às vezes acho que não.
Mas não é só isso. Pro casamento funcionar, você precisa querer fazer o casamento funcionar. De verdade. Do fundo da sua alma, você precisa querer. E querer, isso sim, é uma opção. Você escolhe querer, todo dia. Apesar do cesto de roupa suja cheio, apesar da conta de luz muito alta, apesar de <insira aqui aquilo que mais te irrita>. Apesar de. A vida meio que é feita de “apesar des”. O casamento – até onde sei – só pode acontecer dentro da vida, então, em decorrência da lógica aristotélica das coisas, podemos concluir que o casamento é, também, meio que feito de “apesar des”.
E, daqui da minha boa base teórica e da minha construção prática em progresso, eu acho que querer fazer um casamento funcionar é muito mais bonito, muito mais significativo e muito mais fantástico do que qualquer outra ideia sobre o casamento. Porque quando você escolhe, quer e trabalha por algo, você deixa de escolher, de querer e de trabalhar por outra coisa. É uma opção. Uma escolha consciente de que, em um mundo de infinitas possibilidades, você optou por uma.
Uma casa com a conta de luz alta, com um cesto de roupas sujas cheio. Uma pessoa, com corvos no telhado e tudo. Sua pessoa. Alguém que você escolheu pra amar, respeitar, casar, mas mais que tudo isso. Alguém que você escolheu pra dividir a vida. A sua pessoa, que escolheu você, que escolheu amar você, com seus corvos no telhado também. Que escolheu dividir a vida com você.
A vida – até onde sei, também – é uma só. Temos uma jornada que vai durar por volta de uns oitenta anos se nada der muito errado. Desses, de pelo menos uns quinze, do começo, do período da faculdade e/ou do final, não teremos lá muitas memórias. A decisão de dividir a vida com alguém me parece, dentro desse cenário, uma decisão muito importante. E, sendo uma decisão muito importante, é importante (dã) que ela seja tomada de forma consciente.
É claro que você pode se arrepender da sua decisão de dividir a vida com alguém. Não se trata de um pacto assinado com sangue e que te vincula por toda a eternidade. Felizmente você não precisa – nem deve, acho eu – ficar num casamento em que você não vê mais sentido. Você pode sair. Mas tem uma coisa que você não pode: você não pode recuperar aquele tempo de vida que depositou ali. É mais por isso do que por qualquer outra coisa que eu acho que a decisão de dividir uma vida precisa ser consciente. Pensada. Refletida. Tomada em conjunto.
Quando entreguei o texto pra minha irmã, pouco menos de um mês antes do casamento, também dei pra ela, como se me pertencesse, a minha música favorita dos Beatles, When I`m Sixty Four. É a segunda música do lado B do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que completa cinquenta anos de seu lançamento agora, no próximo dia primeiro.
Uma música cinquentona, mas que sempre me pareceu fora do tempo. Ela é singela. E é bonita. Fala de amor em coisas pequenas, se é que existem coisas pequenas no amor. Fala de economia, de passeios no parque, de pechinchas em viagens, de não esquecer de trancar a casa, de perder cabelos e trocar fusíveis.
Acho que essa canção – como tantas outras no mundo, é verdade – fala exatamente disso: da escolha de dividir uma vida. E eu acho que é assim – uma escolha consciente de duas pessoas comprometidas com um projeto de dividir suas vidas – que deve ser um casamento.
Então, é sobre esse plano que vou falar aqui, toda última quinta-feira do mês. Esse plano infalível, mas que pode falir sem muita explicação tanto quanto pode ser infalível mesmo, com nós na orelha do Sansão e nada olhos roxos na rua do Limoeiro. Esse plano que é tão individual – só você sabe se quer e com quem quer e até quando quer dividir a vida – e tão conjunto ao mesmo tempo – não dá pra dividir a vida com quem não quer dividir a vida com você. Esse plano que, mesmo que você queira, não pode controlar direito, embora, na verdade, você possa. Essa vida dividida, mas que não parece muito pela metade – vá entender a lógica dessas coisas de operação matemática, né? Essa vida depois do sim.
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…aiaiaiaaiai!!! Meu livrinho de cabeceira funcionando kkkkkk