Minha mãe nunca deu pitaco nos relacionamentos que eu e meus irmãos tivemos na vida. Sempre esteve disponível se quiséssemos conversar (risos), mas sempre defendeu com unhas e dentes – como boa leonina que é – que a gente deveria aprender sozinho.
Mas uma vez, uma única vez, ela me disse uma coisa.
Me deu um pedaço de sabedoria que – claro, obviamente, como não poderia deixar de ser – eu escolhi ignorar. Ah, a adolescência tardia que tive. Não consigo me lembrar bem como esse diálogo aconteceu – nem se foi mesmo um diálogo, porque eu tendo a silenciar – mas ela me disse que não via, no relacionamento que tinha naquele momento, cumplicidade.
Bobagem, mãe, devo ter dito eu. Não quero ser cúmplice de ninguém, devo ter pensado, também. Afinal, pegue aí o dicionário do Google e você vai ver que o significado de cumplicidade é “participação secundária na realização de um crime de outrem”. Quero isso pra mim, não, mãe. Mas, embora eu tenha escolhido não entender direito, nunca esqueci aquilo que dona Elena me disse. Ficou na minha cabeça.
Aquele relacionamento – provavelmente pela razão que minha mãe apontou – não deu certo. E eu sofri, como só pessoas que têm dezenove anos uma vez na vida são capazes de sofrer quando têm seu coração partido.
Quando somos jovens, tendemos a encarar tudo de forma muito literal. Acho que, porque nos falta experiência de mundo, nos agarramos aos significados das palavras e tendemos a entender cumplicidade como “participação secundária na realização de um crime de outrem”, nada mais.
Mas é claro que o que minha mãe quis me dizer aquela vez não foi isso. Ela não queria que eu fosse partícipe em qualquer crime, não me educou pra isso. O que ela queria dizer é que faltava, naquele relacionamento, outra coisa. Uma coisa que tem difícil definição, porque pra cada pessoa pode significar uma coisa diferente. Significar? Acho que não é a palavra certa. Pra cada pessoa, pode ter um sentido diferente.
Eu e Renan somos cúmplices. No exato sentido do que minha mãe me disse aquela vez. E, pra mim – porque Renan pode fazer (e provavelmente faz) uma leitura totalmente diferente – nossa cumplicidade pode ser definida em ausência de filtros. Em casa, eu não preciso acionar nenhum filtro. Em casa, eu posso ficar confortável, mesmo que a gente esteja discutindo sobre quem deveria ter lavado a panela do jantar. E eu gosto de poder ficar confortável (deve ser porque passo tanto tempo da minha vida me sentindo, em alguma medida, desconfortável).
O sentido de cumplicidade, pra mim, tem a ver com conforto. Com não precisar filtrar antes de falar. E, muitas vezes, com nem precisar falar. Mesmo quando Renan reclama – e ele reclama – que eu não falo as coisas, eu não preciso falar. É isso que a cumplicidade que tenho com Renan me proporciona.
E é por isso que acho engraçado – pra não dizer um pouco insano, talvez – que tenha tanta gente no mundo fazendo oposição entre “amar mesmo” e “estar confortável”.
Na minha cabeça – vivendo o que vivo hoje e tendo construído, até aqui, minha experiência teórica e prática com relacionamentos – não existe alteridade entre essas duas coisas. Na minha cabeça, “amar mesmo” e “estar confortável” são duas coisas que andam juntas.
Aí, ato contínuo, me pego pensando quando foi que conforto virou uma coisa ruim. Em que momento a humanidade decidiu isso. E é muito estranho – ou, a depender do seu marco teórico-filosófico de vida, não é estranho at all – que a gente, ao mesmo tempo, queira tanto e se esforce sobremaneira pra não atingir o conforto.
Louco, né?
Eu não sou uma profunda estudiosa de Zygmunt Bauman, mas eu já li algumas coisas sobre a modernidade fluida. E me reconheci em muitas dessas coisas que já li, porque sou fruto do meu tempo e meu tempo – o nosso tempo – é um especialista em produzir pessoas ansiosas.
Bauman diz que “o sentido do presente está adiante” e, olhando pro mundo de hoje, não posso deixar de concordar. A gente tá sempre atrás de alguma coisa. Qualquer coisa. Qualquer coisa que não esteja a nosso alcance. E aí, continua o maior sociólogo polonês que você respeita, “não há perspectiva de “reacomodação” no final do caminho tomado pelos indivíduos (agora cronicamente) desacomodados”.
Então, acho que, no fim das contas, significado e sentido de cumplicidade se encontram. Pelo menos aqui, na minha cabeça. Eu e Renan somos cúmplices de um grande crime contra a humanidade líquida. Somos cúmplices em estarmos confortavelmente nos amando mesmo, ainda que façamos isso sem dizer uma palavra ou discutindo sobre quem vai lavar a panela do jantar.
E pra você, qual o sentido de cumplicidade?
Comment
Só pensando na lista de pessoas que tu coloca na coluna do ‘confortável’. Amei o texto <3